É comum falar que das crises nascem oportunidades. Com o crescimento das fontes intermitentes de energia, como solar e eólica, o papel das usinas térmicas como garantidoras da segurança energética aumenta.
Nesse contexto, o hidrogênio de baixo carbono — ainda em estágio embrionário no Brasil — pode se tornar, nos próximos anos, uma peça na descarbonização e flexibilização da geração térmica nacional.
Os primeiros passos já estão sendo dados, ainda que por uma força das circunstâncias.
A escassez global de turbinas a gás convencionais abre uma janela para a adoção de modelos já disponíveis no mercado com capacidade para operar, total ou parcialmente, com hidrogênio, olhando para o leilão de reserva de capacidade (LRCAP).
Gargalo global de turbinas
Nos últimos anos, a indústria mundial de turbinas a gás sofreu um forte desequilíbrio entre oferta e demanda.
De um lado, a guerra na Ucrânia e a crise energética na Europa provocaram uma corrida por soluções de geração térmica a gás, especialmente em países que buscavam reduzir a dependência do combustível russo.
Ao mesmo tempo, nações da Ásia, Oriente Médio e América Latina, intensificaram projetos térmicos para garantir energia firme diante da intermitência das renováveis.
Somou-se a isso, a competitividade do gás natural e do GNL dos Estados Unidos, que ainda deve aumentar sua exportação até o fim da década, e o rápido desenvolvimento de data centers e da inteligência artificial (IA), que está elevando a demanda por energia.
Como resultado, a procura por grandes turbinas industriais cresceu mais de 25% entre 2021 e 2023, segundo a McCoy Power Reports, que acompanha a indústria global.
O ano de 2024 marcou o maior número global de unidades e gigawatts, quase 500 unidades e 60 GW, registrados, superando os mais de 40 GW de 2023.
Por outro lado, a oferta não acompanhou esse ritmo.
Desde a década de 2010, grandes fabricantes como GE, Siemens Energy e Mitsubishi Power haviam reduzido suas linhas de produção de turbinas a gás diante do avanço das energias renováveis e da pressão por descarbonização.
Além disso, a pandemia de Covid-19 desorganizou cadeias de suprimentos globais, afetando diretamente o tempo de entrega das máquinas.
Segundo a Wood Mackenzie, 90% da capacidade global de produção de turbinas a gás já está comprometida este ano.
Pesquisadores do Energy Power Research Institute apontam que os fabricantes de equipamentos originais estavam cotando um prazo de cinco a sete anos para quem está tentando encomendar uma turbina a gás agora.
Essa limitação vem levando a um novo critério de escolha em projetos térmicos ao redor do mundo, a disponibilidade mais imediata do equipamento, independentemente da tecnologia tradicional.
Fabricantes vêm priorizando a entrega de modelos com capacidade de operar com hidrogênio, que, segundo apuração da agência eixos, têm uma fila de espera menor em relação aos convencionais.
E em um cenário de escassez de turbinas, com preços inflacionados, as versões hydrogen-ready, ainda que mais caras, se tornaram, no longo prazo, mais viáveis — considerando o cenário de neutralidade de carbono em 2050.
Modelos como Mitsubishi, Siemens e GE já oferecem trubinas que podem operar com até 30% de hidrogênio inicialmente e migrar gradualmente para até 100% conforme o combustível esteja disponível.
Algumas delas já estão em operação no Brasil, o que tende a se intensifcar.
Atualmente, mais de 120 turbinas a gás da GE Vernova operam podendo receber um conteúdo de hidrogênio variando de 5% a 100%.
Oportunidade estratégica para o Brasil
No Brasil, esse cenário pode influenciar os próximos projetos nas novas rodadas de contratação de térmicas, em especial no LRCAP 2025, cancelado para uma reformulação nas regras.
A situação é considerada mais crítica para projetos que começam a operar em 2028 e 2029 — data de entrada em operação das primeiras usinas greenfields, pelas regras até então definidas para o leilão de reserva de capacidade.
A adoção de modelos hydrogen-ready pode ser tanto uma resposta prática à falta de turbinas convencionais, quanto uma estratégia para alcançar o net zero.
Essa possibilidade ganha força à medida que o Brasil consolida sua vantagem competitiva na produção de hidrogênio de baixo carbono.
O país possui alto potencial para produzir hidrogênio a partir de fontes renováveis e de gás natural ou biometano com captura de carbono, além do etanol.
Outro diferencial estratégico do hidrogênio é a possibilidade de produção descentralizada, o que poderia compor um mix para térmicas localizadas em regiões sem acesso à infraestrutura de gás.
Além disso, outra vantagem da adição do hidrogênio na geração térmica é o seu alto poder calorífico, superior ao do gás.
Em Utah, nos EUA, o projeto Advanced Clean Energy Storage, liderado pela Chevron, está construindo uma usina com 840 MW de capacidade, usando turbinas da Mitsubishi Power com 30% de hidrogênio desde o início e possibilidade de alcançar 100% no futuro. A previsão é de que a produção comece ainda este ano.
Preparar o parque térmico para o futuro
Diante da necessidade de garantir segurança energética com menor emissão de carbono, os projetos térmicos no Brasil podem aproveitar o momento para que novas térmicas a gás estejam preparadas para operar com hidrogênio.
A adoção gradual do energético produzido no Brasil reduz a dependência de combustíveis fósseis importados, diminuindo exposição do país ao risco internacional, como tratei na coluna da semana passada.
Além disso, não se pode perder de vista o impacto sistêmico que o do hidrogênio pode ter no setor elétrico, considerando a possibilidade de o excedente de energia renovável ser transformado em hidrogênio verde — evitando cenários de curtailment (tema de outra coluna) — , e, posteriormente armazenado e utilizado para gerar eletricidade, seja em células a combustível ou em turbinas a gás.